“Um uísque com gelo, por gentileza”. O garçom aquiesceu e se retirou sem fazer um som sequer. Elizabeth tinha o costume de freqüentar aquele bar. “Que bar, que nada”, insistia ela, “esse tipo de ambiente se chama lounge”. Seus cabelos negros estavam presos em um coque leve, alguns fios teimando em cair sobre seus olhos azuis. Era a mulher mais bonita do bar e não aparentava seus 40 anos. Apoiou os cotovelos no balcão onde as bebidas eram servidas e pensou, irritada, “Que calor dos infernos!”.
Estava quente, mesmo. Não chovia há três meses e meio e o sol não perdoava ninguém. Era possível ver partículas de poeira que pairavam no ar oscilando, insistentemente, como crianças agitadas em um balanço. O calor, dizia o noticiário, era anormal para aquela época do ano. “Aquecimento global”, pensou com convicção. Para ela era desagradável a idéia de o mundo estar em risco. Sempre fora uma ativista ambiental, participara do Greenpeace até os 30, e tinha que sofrer as conseqüências dos atos alheios. “Chega desse calor insuportável. O senhor poderia ligar o ar condicionado?”, pediu, delicadamente, ao garçom que lhe trouxera a bebida. “Está ligado, senhora”, ele respondeu prontamente.
“As calotas polares estão derretendo, e eu nem posso me refrescar numa tarde de quinta-feira”, indignou-se. Elizabeth tinha certa aversão ao calor. Sulista, morara na Europa por cinco anos e se habituara a passar frio. Sentia seu corpo pegajoso, os fios de cabelo sobre os olhos já haviam grudado em sua testa. Era difícil para ela entender como as pessoas eram capazes de sorrir, de tão quente que estava. Uma leve falta de ar a fez colocar a mão sobre o peito e ofegar. “Que é isso, meu Deus?”, indagou com uma risada nervosa. Bebeu o uísque de uma vez, com uma careta. O gelo derretido diluíra sua bebida.
Sua vida não estava bem. Separara-se há menos de um mês e ainda chorava a falta de uma companhia. A felicidade das pessoas ao seu redor muito a desagradava. “Aposto que Hitler se sentia assim”, pensou alto. Fazia uns dias que o austríaco não saía de seu pensamento. Ele era, praticamente, o homem da sua vida. Hitler, durante sua juventude, fora rejeitado pela escola de Belas Artes. Semelhantemente, Elizabeth gostaria de ter se dedicado à dança e se tornado uma bailarina famosa. Seus sonhos foram destruídos pela família, que insistiu para que cursasse Medicina.
“Doutora Elizabeth Carneiro. Não soa bem!”, exclamou com a voz um pouco alterada. Pediu outra dose de uísque. Assim como o Führer, demorou a se casar. Seus pais teriam gosto em vê-la num convento. Ao pensar nisso, riu levemente. Se fosse obrigada a usar um hábito com tantas camadas de tecido, se mataria, com toda a certeza. Nesse momento, porém, sua ânsia era outra. Seus planos não incluíam tomar cianureto, como fizera esposa do nazista, pelo contrário, almejava matar todos os presentes. Bebericou o uísque. “Não é difícil matar gente”. Formada em Medicina, Elizabeth deparou com muitas vidas em suas mãos e salvou todas. “Será que Deus iria se zangar se eu matasse uma pessoinha, só? Assim, pra relaxar...”. E o calor só aumentava.
O suor escorria por seu corpo e seu desejo assassino era diretamente proporcional à elevação da temperatura. “Quente, quente, quente. Matar, matar, matar!” Aproveitou-se de uma distração do barman e pegou uma faca que ele usara para cortar rodelas de limão. Analisou as pessoas ao redor. “Quem aqui merece morrer hoje? Nesse dia tão quente, nem é bom viver”. Olhou para os lados e avistou o ex-marido. “Ora, ora”, riu, diabólica, “quem é vivo sempre aparece” Levantou-se e caminhou até ele devagar, com a faca às costas. Mais uma vez, sentiu um aperto no peito e faltou-lhe o ar. “Ai”, murmurou. Segurou a faca com a mão direita para que ficasse firme. “Você tem sorte, Carlos Alberto, sua morte vai ser pá-pum”.
Porém o aperto no peito voltou. Seria a menopausa? Isso explicaria tantos calores. Mas o aperto virou uma pontada. E outra, e mais uma. Cada vez mais fortes. Elizabeth sentia o sangue de seu coração sendo bombeado violentamente por suas artérias. “O que é isso? Será uma infecção? Algum vaso se rompeu? Será uma trombose? Não, não é possível, sempre me exercitei tanto! Alguém faça o favor de me ajudar antes que eu morra? Ainda não é a minha hora! É a dele!”. Entretanto, não conseguia mais falar. Um som rouco saiu de sua garganta e ela caiu de joelhos no chão. Foi um ataque cardíaco fulminante. “Ao menos”, disseram seus amigos, “ela foi citada brevemente no noticiário do dia posterior ao incidente”.
Dizem que Carlos Alberto, em seu momento mais sádico, gravou o noticiário em uma fita VHS e que assiste a ele todas as noites, gargalhando da desgraça de sua maldita ex-mulher.